segunda-feira, 9 de maio de 2011

Tecnobrega por outro ângulo: Alçando vôo.

Lançada na Europa, versão tecnobrega de Gaby Amarantos para 'Águas de março' chama a atenção - O Globo




RIO - O pau e a pedra - verso e melodia - estão lá, intactos. Mas o fim do caminho é completamente novo. Sob a batida do tecnobrega, seus timbres digitais de sabor vulgar e o canto quente e úmido de Gaby Amarantos (conhecida como a Beyoncé do Pará) - o oposto da histórica leitura cool de Elis -, "Águas de março" soa novíssima. E impressionante. Lançada digitalmente na Europa como faixa-bônus do EP "L.O.V.E. banana", de João Brasil e Lovefoxx, a gravação não só aproxima Tom Jobim do terreno da música ultrapopular de Belém (gênero aberto por natureza, acolhendo hits do pop internacional e ritmos tradicionais do Norte) como também - seu feito mais notável - apresenta uma maneira originalíssima de cantar o clássico, renovando (e confirmando) a potência da canção.
- Achei sensacional - louva Nelson Motta, que ressalta exatamente a originalidade da gravação. - Já tinha ouvido a Gaby em disco, mas nunca a vi em show, o que dizem ser ainda melhor. Também sou fã de João Brasil, acho seus mashups incríveis, surpreendentes e incrivelmente musicais. O encontro com a Gaby gerou essa "Águas de março" diferente de todas as centenas de outras gravações, deu um sopro de novidade, um calor diferente. Amei.
A releitura de "Águas de março" por Gaby e João se insere numa tradição da música brasileira instituída desde o tropicalismo: o cruzamento de uma suposta "baixa MPB" (mais popular, mais romântica, de cores berrantes) com o que de mais nobre se produziu na nossa canção. Geralmente, porém, a mão é inversa, de "cima" para "baixo" - Caetano Veloso, Celso Fonseca, Adriana Calcanhotto fazem isso com certa frequência.
'Apropriação orgânica'
Os exemplos no sentido oposto são raros. "Águas de março", na verdade, não chega mesmo a ser um exemplo perfeito - está próximo disso, com Gaby bebendo em Tom, mas a figura de João está ali como um tipo de mediador.
- Quando a música mais de elite se apropria de algo muito popular, há ali uma declaração pró-tropicalista, de que esses universos podem conversar e que isso é positivo para a nossa cultura - defende o pesquisador de música popular Miguel Jost. - Já quando ocorre o inverso, de o artista popular pegar algo da elite, essa apropriação é mais orgânica, tem a ver com uma relação dele com aquela canção. Por exemplo, existe um funk proibidão feito sobre "Lindo lago do amor" (o funk tem outros exemplos do tipo, abraçando de Roberto Carlos a Geraldo Vandré). Porque são músicas que esses artistas conhecem e pelas quais se interessam, ao contrário do que imagina uma certa visão preconceituosa que existe sobre o grau de informação desses artistas. O fato de serem sempre canções famosas, nunca lados B, comprova isso. Agora, se eles buscam algum tipo de legitimação por meio dessas incursões, é um equívoco. Primeiro, porque para ser reconhecida como música importantíssima, o tecnobrega, por exemplo, não precisa passar pela MPB. E também porque essa postura cai na velha armadilha de separar alta e baixa cultura.
João Brasil lembra o encontro de Roberto Carlos e Caetano Veloso em torno da obra de Tom, talvez o exemplo mais ilustrativo dessas diferentes abordagens de que Jost fala. E o dueto de "Chega de saudade" é a síntese exata. Na interpretação de Caetano, a canção exibe toda sua potência revolucionária, a ousadia formal, estética, filosófica que a bossa nova, representada naquela obra fundadora, traria. Quando Roberto canta, o que se mostra é uma grande canção de amor.
- Quando vi os dois juntos cantando Tom, foi fantástico - lembra João, que fala com simplicidade sobre a ideia de "Águas de março". - Acho tecnobrega ótimo, acho Tom ótimo. Quis juntar os dois. A ideia inicial era fazer um dueto como o de Elis e Tom, mas quando pus minha voz do lado da de Gaby, vi que não dava para mim.
'Queria fazer algo agressivo'
Com histórico de cantora de barzinho-de-voz-e-violão, Gaby já havia interpretado "Águas de março" pela cartilha MPBística inúmeras vezes. Mas, quando recebeu o convite de João, identificou uma força na proposta ("Isso é muito transgressor", reagiu então) e quis fazer algo especial.
- Não queria seguir o jeitinho eternizado pela Elis. Porque não era só aquela história de botar batida drum'n'bass e cantar em cima. Queria fazer algo agressivo, pôr a rua, a periferia - diz a cantora, ressignificando a enxurrada de Tom. - A água é muito presente no Norte. Em Belém chove todo dia, tem muita praia de rio, muita enchente, onda... Nas nossas águas de março, vem a maré alta, enchem as casas da periferia. Queria cantar com esse olhar. E a música, de forma poética, fala exatamente disso.

Fonte: O Globo

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